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Doente de velho - Por Flavio Siqueira
09/10/2020 18:42 em Textos

Ainda guardo uma singela memória do tempo em que fui velho.

Lembro do cansaço, da sensação que o mundo tinha ficado grande e movimentado demais e que eu não era capaz de estar nele. As imagens não são muito nítidas.

Lembro também de um sentimento constante de despedida. Eu vivia como quem está no último dia de uma longa viagem, com a mala pronta, aguardando a chegada do trem que me levaria embora. Cada experiência poderia ser a última e saber disso me fazia sofrer.

Estranho dizer, não é fácil recuperar cenários. Às vezes um ou outro aparece aleatoriamente e tenho dificuldade em discernir se foram reais ou fruto de imaginação.

Tem uma cena que sempre volta. Era um clube, talvez um parque, essa parte ainda não está muito clara.

Vejo outros velhos como eu.

Havia uns cinco ou seis senhores, todos mais ou menos com minha idade.  Estávamos em uma roda discutindo assuntos de velho, dizendo que o passado era melhor e que o mundo se encaminhava para a perdição.  Não escondíamos a saudade de outros tempos, não exatamente por serem melhores, mas por tratar de um mundo onde ainda cabíamos.

Tínhamos controle do rumo de nossas vidas, tínhamos escolhas, estávamos indo para muitos destinos e a morte parecia um conto encantado, distante demais para nos preocuparmos. No fundo estávamos lamentando não ter mais corpo para viver o mundo que evoluiu com gente nascendo, com lugares para ir, tecnologias sendo criadas, as moças bonitas, as praias, as festas, as alegrias que ainda éramos capazes de ver, mas privados de viver.

Naquela manhã ouvi pela primeira vez a frase: “A velhice é uma doença.”

Foi um dos amigos que resmungou no meio da conversa. “A velhice é uma doença. ” Nunca deixei de pensar naquilo. Eu, que sempre tentei ver o lado positivo de tudo, que na juventude pensava que seria um velho sábio e feliz, cheio de netos, de paz, agora me percebia doente de velho.

 

O mundo ainda existia e a vida jamais deixou de fazer convites que somente os sãos podem aceitar, não os doentes. Para nós, os doentes de velho, havia certa compaixão irritante, nos olhavam como seres frágeis, menores, não como fazem com as crianças que ainda tem o mundo inteiro pela frente, mas com os moribundos que recebem o benefício de escolherem como será sua última refeição.

Nossa última refeição era diminuta e sem colesterol. Só saladas, por favor. Diminuam as alegrias, sem riscos, sem risos, pode fazer mal para o coração.

Se a velhice é uma doença, alguém deveria inventar a cura.

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